Os frutos da Floresta de Dionísia

on sexta-feira, 28 de maio de 2010

“Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas

Vivem pros seus maridos

Orgulho e raça de Atenas”
                                                                                                                                
As figuras femininas subservientes assim foram entoadas por Chico Buarque e Augusto Boal em Mulheres de Atenas. Dando um tom de alerta, não sejamos mitos, não existe supremacia masculina, sejamos verdadeiramente mulheres. Longe da Grécia, houve uma Dionísia à frente do seu tempo, Nísia Floresta - pseudônimo literário, orgulho e raça do Brasil. Nascida em 1810, talvez batizada por um sopro advindo dos “deuses” sob o feminino de Dionísio, nome do pai, nome da filha; era um costume de época.

No imaginário, o Dionísio grego ou o Baco romano é a figura das festas e orgias, único deus filho de uma mortal. Divindade da vegetação, principalmente árvores frutíferas, apaixonou-se pela cultura das uvas. Percorreu a Terra como errante e, nessa longa jornada, mostrou aos mortais como cultivar as videiras e  preparar o vinho. Certa vez amou e foi amado, mas perdeu a sua Ariadne. Ele morria a cada inverno e renascia na primavera. Para seus seguidores, esse renascimento cíclico simbolizava a promessa da ressurreição. De volta ao Olimpo, o regente do êxtase e do entusiasmo levava alegria e felicidade por toda a Grécia onde também era considerado protetor das belas artes. 

Já a nossa Dionísia, deixou para trás as “cadenas”, abraçou a luta feminista e outras batalhas que encontrou em sua jornada. De Dionísio, ela carrega a força de um nome inspirador, mais que videiras, tamanha Floresta. Mulher mortal, imortal na verdade dos fatos. Também percorreu a Terra educando; extraindo da dor poesia e publicando os seus primeiros artigos abordando a condição feminina e comparando-a com diversas culturas da Antigüidade. Percorria o mundo, mas sempre voltava ao seu Olimpo, o Brasil. 

Perdeu dois grandes homens de sua vida: O seu  inspirador pai herói e o seu fiel companheiro Manuel Augusto, ambos em determinados agostos. Mês criado pelos antigos romanos para homenagear Augusto, filho adotivo de Júlio César, coincidência ou não, ao longo da História, o agosto vem marcando acontecimentos trágicos, daí vem o termo “agosto, mês do desgosto” e Nísia declaradamente odiava esse mês, apesar de, ironicamente, ter o seu próprio e amado filho Augusto.

Pois, entre suas augustas realizações, dirigiu uma instituição de ensino de mesmo nome, o Colégio Augusto, pressupondo que o sofrimento não  é exatamente o "x" da questão, talvez um sutil teorema, uma questão de ângulo. A educadora teve como bandeira em suas metas de instrução corrigir erros seculares da formação educacional da mulher. “Salve símbolo augusto da paz, tua nobre presença a lembrança, a grandeza da Pátria nos traz”.  

A mulher brasileira de hoje nasceu da ousadia de Nísia Floresta, ora bem dito, “a fantasia impulsiona tudo cem por cento, quem sabe, um pouco mais. Não existem fronteiras nem escudo nos sonhos loucos e monumentais”. A mulher de hoje revê seus papéis, a luta atual ainda implica dissipar padrões contraproducentes, desfazer mitos, refazer a dualidade entre doçura e fortaleza. Mas também há outros contornos, o de ser mulher e ser profissional, duelar com o pós-modernismo e poder sair de uma experiência amorosa deixando um recado no espelho escrito com batom carmim cor-de-Pagu.

No Brasil, o voto feminino só foi reconhecido em 1932. O impacto do movimento feminista e o pioneirismo de Nísia Floresta são responsáveis pelo avanço lento, mas legítimo e com condições de oferecer mudanças no pensamento da sociedade. Algumas políticas públicas têm contribuído para a transformação da condição social das mulheres nas últimas décadas. Em eleições passadas, os cidadãos elegeram a maior bancada feminina da história política brasileira.

Ao contrário do mitológico Dionísio, nossa Nísia Floresta jamais precisou morrer no inverno para renascer nas flores de ilustre pensadora, idealista, autodidata, revolucionária, jornalista, abolicionista, republicana, positivista, educadora, poetisa, feminista, ufanista, indigenista, libertária, principalmente, mãe. Do ventre materno, dois filhos; das mamas, o primeiro alimento; dos pensamentos de mulher, “Conselhos à minha filha”, livro dedicado à sua filha Lívia, obra de destaque de mãe para filhas e filhas das mães.

Não se sabe se na época de Nísia ainda era costume o aluno, inocentemente, levar uma maçã para o professor, tal alimento que ganhou fama de fruto proibido. Mas sabe-se que nos campos de Nísia “o despotismo ordenado pela religião não devia censurar a falta de uma educação esclarecida sem a qual mais facilmente os homens se submetem ao absolutismo de seus governantes”.

Entre mitos e lendas, conta-se que os olhos arrancados do pequeno índio Aguiry, morto por Jurupari quando colhia frutas e perdeu-se em uma floresta, foram plantados por ordem de Tupã, dando origem a uma planta que deixaria mais fortes e felizes aqueles que a comessem. A planta possui as sementes em forma de olhos, recebendo o nome de Guaraná.

O que se sabe é que os indígenas brasileiros eram nômades e Dionísia cidadã do mundo. Eles conheciam as trilhas da floresta, habilidade imprescindível quando se quer fugir, portanto, não eram facilmente escravizados. E Floresta conhecia as trilhas do conhecimento, ferramenta poderosa contra as injustiças, pois, “se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta”.

Mas as páginas sobretudo tristes da nossa História contam que os negros eram facilmente escravizados. Eles já conheciam tal sujeição e o que lhes restava era o banzo, sentimento de saudade, saudade que muitos acreditam só existir na Língua Portuguesa. "As dores morais passam desapercebidas nas habitações do branco". E o banzo, muito mais forte do que as chibatas, matava de uma dor de sangrar peito. Do fruto do dendê, uma das tantas heranças africanas, o azeite, “unção de tua gratidão*”, a esse país que não recebeu seus irmãos de braços abertos, mas com cadenas em punhos e calcanhares de aquiles. A seu tempo lhes concedeu a liberdade e, ora pois, do mesmo modo desamparou indesejados herdeiros das injustiças sociais.

O que se sabe é que os frutos da Floresta de Nísia são cultivados até hoje e para os seus seguidores este renascimento cíclico personifica a luta em prol dos Direitos e contra as injustiças dos Homens. Abre-alas do entusiasmo, Nísia Floresta levava em seu cortejo “aqui sob esta abóbada” “opúsculo humanitário”, onde era considerada protetora das causas justas.

*Referência ao Pixinguinha, extraída da canção "Rosa". 

Links afins:   
Projeto Memória

12 comentários:

Roniel A. Julio disse...

Amiga Luvaz, devo parabenizá-la por tão brilhante texto. Falar da mitologia já é graticante, e falar de Dioniso ou Baco, o deus do vinho e suas divindades, traçando parâmetros com a atualidade da mulher, foi ,simplesmente, fantástico. Uma leitura memorável. Abraços. Roniel.

Principe Encantado disse...

Lu esse post veio como uma bomba, mitologia adoro, quando as entre linhas Marina Silva seja um caminho, mais tudo é muito turvo, o futuro a mim nada mostra de concreto, mais aguardemos e vamos sentir na pele o resultado final.
Abraços forte

Beth Muniz disse...

Olá Luciana,
Que belo poema. Sim, porque pode ser considerado um.
Não sei se você sabe que a cidade de Nísia Floresta fica no Rio Grande do Norte. Já estive por lá nas minhas andanças nos picadeiros...era bem pequena, mas me lembro muito bem.
Nísia Floresta...Depois Pagú, Leila, e tantas outras, para brindar a liberdade com Deus Baco e Dionisio.
Viu? Viajei na sua poesia.
Grande abraço.
Parabéns.

Anônimo disse...

Olá, minha querida Beth! Eu sabia que a cidade fica no Rio Grande do Norte, mas ainda não tive o prazer de conhecer. Saiba: Tenho planos para Pagu e Leila nos próximos dias/semanas. Pagu, eu já te adianto que vai ser a postagem de 9 de junho. Obrigada por viajar comigo e deixar suas impressões. Um beijão da Lu.

Mr.Jones disse...

adorei sua postagem,
curti demais ver a MARINA SILVA, e a musica do Chico
Quero me casar com uma dessas mulheres de Atenas.
ahhahahah
bjs

Anônimo disse...

Luciana,como tudo que vc faz...o artigo ficou magnifíco,sua abordagem a mitologia formando um parametro com os nossos dias se tornou uma leitura deveras esplendida,e como se não bastassa a linda canção de Chico.(li o texto a ouvindo,foi demais!)
Bjos

Unknown disse...

Bravo,bravo,bravo,todo brasileiro(a) deveria ler isto.

Rumquatronove disse...

Lu,desculpe minha ignorância abissal,mas só agora,pelo seu texto,ouvi falar dessa guerreira.Parabéns a ambas;e,como eu disse uma vez,meu voto é seu,antes de qualquer bancada.Divulgue-se o belo sexo,virando o jogo para o Poder feminino.Elas por Cima Já!Sem trocadilhos e sem sacanagens... Gostei dos links tb.Um abraço.

Jackie Freitas disse...

Oi Lú!!!
Um dos maiores prazeres de estar aqui no dihitt é poder ler maravilhas como esse seu texto! Sensível e sutil (para mim uma de suas características), fez uma esplêndida retomada na história, buscou personagens mitológicos e humanos para criar um paralelo com a nossa realidade.
Parabéns! Excelente texto!
Grande beijo,
Jackie

Silvana Marmo disse...

Amiga e mulher, guerreira...
Por sua beleza e por sua fragilidade a mulher é quase sempre comparada às flores. Mas nem sempre enxergamos que em meio a dor a mulher revela-se como aço, de pé a enfrentar seu problemas e suas dores. As suas lágrimas transbordam e purificam o seu próprio cálice.
Não existe versão masculina ou feminina para a fé, mas na preciosidade da alma feminina todo homem pode encontrar o belo dom de Deus para enfrentar de pé a dor na esperança de uma vida nova.
Boa semana

Rejane de Souza disse...

Fico muito feliz por saber que a obra de Nísia Floresta tem vem sendo, cada vez mais, difundida entre nós brasileiros, pois o talento e pioneirismo dessa mulher singular ensejam mesmo um olhar tão poeticamente mitológio de Luz Vaz. Parabéns pelo belo texto. Veja meu blog para saber mais sobre a iniaguração do Museu de Nísia na cidade onde ela e eu nascemos.
Um abraço
Rejane

Rejane de Souza disse...

@NFloresta, através do twiter, cheguei ao blog de Luz Vaz

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