Conto do vigário

on sexta-feira, 14 de agosto de 2009




Não precisava de relógio. O cheiro oriundo do forno da padaria invadia tudo como se, pontualmente, chamasse a vizinhança para o café-da-manhã. O velho escritor era o cliente mais antigo do lugar. Sem fazer prévias reservas, sua mesa favorita estava à disposição todas as manhãs. Sequer precisaria fazer o pedido, entretanto, o ritual não era desprezado.

_ Bom dia! Veja-me aí um café-com-leite e um pedaço de pão-de-ló. 

Só não rezava o pai-nosso de cada dia porque era ateu. Mas de uma fatia do bolo quentinho não abria mão, pois, tinha aroma de nostalgia, gosto de infância, quase feição de tia-avó. 

Funestamente, aquela manhã não foi igual. O homem nem bem tirou proveito de tal gênero que lhe alimentava corpo e alma, seguiu-se o seu último suspiro. Em pouco tempo jaziam lamentos e aproximavam-se curiosos, jornalistas, ambulantes oferecendo toda sorte de quinquilharias. Só o rabecão demorou a chegar. 

Finda cena, desfeita a platéia, eis que surge um manuscrito inacabado, supostamente as últimas páginas do literato morto. Eis que o escritor alcança a fama. O texto passa a circular na internet, em jornais e revistas, a tal ponto de um apresentador, com ares de sofrimento, ler, em tom comovido, para os seus telespectadores. 

O sucesso foi tanto que dissimulou a própria compreensão do texto. Somente quando uma celebridade instantânea ia sobrepondo tamanho alarde, alguém finalmente percebeu que se tratava de uma redação cristã redigida por um ateu. A polêmica se transformou em revelação. O escritor voltou ao hall da fama como o homem que encontrou a fé nos momentos finais. 

O apresentador de televisão, cada vez mais emocionado, apressou-se em convidar missionários e incrédulos para o seu programa de variedades. Promoveu-se ali, ao vivo e em cores, um debate acirrado. Inesperadamente, a produção do programa permitiu manifestar-se, por telefone, um padre que tinha urgência em esclarecer:

_ O texto é meu!

E o apresentador, atônito: 

_ Como? 

O padre tentou explicar que perdeu o papel quando deu a extrema unção ao moribundo, entretanto, foi em vão. 

Os fatos foram se desenrolando com todos falando ao mesmo tempo até instalar-se praticamente um julgamento. Homens de fé e descrentes em alguma coisa concordaram, pois, por unanimidade, declararam o padre culpado. 

Da platéia, alguém berrou:

_ É um golpista, esse vigário! 

Outro gritou:

_ Vigarista!

O apresentador indagou:

_ O senhor tem como provar que o texto é seu?

O padre não hesitou:

_ Alguém tem como provar que o sermão é do defunto?

Em paralelo, extraordinariamente, outro telefonema elucidativo atraiu as atenções:

_ A propósito, psicografei a mensagem: Tal qual um mero colaborador, sugiro um desfecho para o seu discurso dominical, senhor padre: “Deus escreve certo por linhas tortas”.

O vigário injustiçado correspondeu:

_ Amém.

 
   Luciana Vaz nasceu em Santos, em 1972. Funcionária pública, formada em Contabilidade, iniciou, sem concluir, o curso de Jornalismo. Como freelancer produziu festivais de música. É co-autora do livro de jornalismo literário “Vidas em Pauta – o cotidiano”.

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