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Blind Nelson

on segunda-feira, 7 de junho de 2010

Hoje eu acordei com uma vontade danada de jogar tudo para o alto. A vida está aí para ser vivida. Não faz sentido acordar tão cedo, pegar um trem tão lotado, conviver com pessoas tão chatas em troca de tão vaga subsistência. Ouvi numa reportagem de TV que algumas pessoas conseguem viver de luz. Quero viver de sons nem que seja passando o chapéu na praça. Quero mergulhar no futuro. Já nem lembro mais de quando eu enxergava.       
                                                      
A única herança que tenho daquele maldito acidente é um genuíno nome de bluesman. A única boa lembrança que eu guardo das viagens matinais de trem são os aplausos dos passageiros que eu divertia com a minha gaita.  Trens e trilhos, de uma maneira ou de outra, fazem parte da cultura blueseira. E cegos, de uma maneira ou de outra, fazem parte da História do Blues. Dizem que sou americanizado. Mas eu sou um brasileiro legitimado bluesman. Não posso olhar para frente, mas, posso dar sentido à minha vida. Posso ir atrás de quem esteja disposto a me ouvir. Posso defender uns trocados para pagar o whiskey nosso de cada dia.

Sinto falta daquela mulher que sempre fazia amor só comigo. Ela queria mais da vida? Não. Ela só queria alguma coisa da vida. Qualquer coisa. Inspirar as minhas canções talvez. Mas não sei onde ela anda. Faz tempo que não sonho. É lá que ela mora e lá é o único lugar em que consigo vê-la. Sonhos, já inventaram um controle remoto para isso? Eu queria sentir o seu cheiro, passar a mão em sua pele, alisar os seus cabelos. 

Ainda não encontrei uma explicação plausível para o que fiz da minha vida e tampouco consigo fazer planos. Por enquanto apenas sinto; o tempo indo e eu ficando. Logo serei mais um velho tentando lembrar as letras dos meus blues favoritos para cantar e tocar para ninguém. A platéia não irá bater à minha porta. Para estar no palco é preciso andar na direção dele. Naquele trem, eu estava indo na direção contrária. Estou farto de lutar para alimentar o corpo enquanto a minha alma apodrece.

Hoje estou meio down, meio blues. Mas o meu velho amigo da banda do colégio me recebe ao piano e toca How long blues. Muitos risos de tempos sem siso e lembranças de quando eu podia ver as pernas das moças nas minissaias. Mas agora é muito melhor porque vou logo apalpando sob o pretexto de examinar a grossura das coxas. O bom de ser cego é que você não precisa encarar risos falsos. Você sente a vida pelos sons, pelo cheiro, pelo calor. 

Pois termino mais um whiskey, apago o cigarro e vou para o palco tocar, por que não? E de repente um perfume me invade. Entorpecido até me esqueço de agradecer aos aplausos que tanto busquei. Não sei o porquê, mas, eu me sinto um autêntico bluesman capaz de escrever a minha própria música. Ouço uma voz feminina cantarolando e me vejo tentando supor a beleza daquela mulher. Eu poderia comê-la com os olhos.

Blind Nelson acompanha Miss Rose

Miss Rose

on

Hoje eu acordei com uma vontade danada de fazer uma grande festa. Motivo eu tenho, afinal de contas, faz um ano que estou limpa. Mas que festa seria essa sem brindes, sem luzes, sem orquestra, sem convidados! Agora lembrei que afastei o esplendor da minha vida em troca de alguns goles, de muitos porres que me anularam.               
                                                                                                 
Só me resta um encontro com recordações daquele tempo remoto que eu tinha controle. A saudade empoeirada guardada em uma gaveta secreta, numa caixa velha, esquecida em algum lugar na confusão dos meus sentimentos. Mas basta olhar as fotografias que elas se renovam. Por mais que sejam em preto e branco, a vida fica mais colorida quando se tem boas lembranças. Nostalgia não me causa melancolia. Só me traz a certeza de que um dia, num passado distante, eu fui feliz, apesar de tudo. A foto de quando fui miss na minha cidade me faz lembrar que sou uma mulher.  

O que me causa melancolia é o presente. É quando percebo que ainda sou mulher, porém, esquecida de mim mesma, das minhas vaidades, dos meus desejos. Perdi o viço, o brilho nos olhos, o frescor da minha pele. A beleza também é remota! Ainda remexendo a velha caixa de imagens preto e branco amareladas, sinto falta de uma do meu marido e outra dos meus filhos brincando no jardim. Deve ser porque não os tive. 

Ainda não encontrei uma explicação plausível para o que fiz da minha vida e tampouco consigo fazer planos. Se eu tento olhar para frente tudo o que consigo ver é uma velha solitária olhando para trás. Se o presente é melancólico, o futuro é desesperançado, desesperador, despedaçado pelo meu penúltimo passado. Dessa maneira, não vejo o porquê de uma festa sem brindes, sem néons, sem música. Estou farta de lutar por uma existência que só existe na minha memória. Não consigo mais conviver com a ex-miss do espelho. Sou digna; de dó. Danem-se os convidados! Antes só do que nunca. 

Hoje eu estou meio down, meio blues. Quero ficar sozinha para ir me acostumando com a solidão que assombrará o meu porvir. Para comemorar um ano de ex-vida nova e o início da minha nova velha vida sem sentido, serve qualquer bar que sirva bourbon e ecoe doze compassos que tocam na alma, que ferem, que doem. A minha velha vida de risos falsos pelo menos tem risos, tem som, tem cheiro, tem movimento. 

Pois encosto-me ao balcão, acendo um cigarro e peço um bourbon, por que não? Mas prestes a virar o primeiro gole, ouço o acorde do bluesman. Ele mal pisa no palco e eu acordo entorpecida sem ao menos encostar na boca o copo. Ele me come com os olhos e eu quase consigo tocar com as minhas próprias mãos aquelas fotos que ainda não existem. Sem perceber, estou na frente do palco cantarolando, me sentindo mulher novamente.

Miss Rose acompanha Blind Nelson

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